sábado, 13 de março de 2010

"A vida como ela é... vivida"

13/03/2010
Idosos do Haiti sofrem mais com os fardos do terremoto

Ian Urbina
Em Leogane (Haiti)

Junie Sufrad, 110 anos, sobreviveu ao terremoto no Haiti, parou de repente enquanto descrevia como era a vida no interior do Haiti antes da eletricidade, estradas pavimentadas e carros.
“Eu não sei se é sorte ou azar ainda estar aqui”, ela disse após uma longa pausa, acrescentando que apesar de não ter perdido nenhum membro, o terremoto de janeiro a deixou como uma amputada. “É como se tivesse perdido parte de mim.”
Sufrad é um monumento ao passado em uma nação que foi separada dele.
Como outros sobreviventes idosos do terremoto, ela é um repositório raro da história e cultura deste país, mas ela disse que considera suas lembranças mais um fardo doloroso do que um legado orgulhoso.
Não estranhos às dificuldades, os idosos haitianos se veem distintamente vulneráveis e emocionalmente abalados atualmente. Eles envelheceram em um lugar onde muitas pessoas morrem jovens. Com a longevidade, vem a culpa do sobrevivente.
“Você supostamente não deveria viver mais que seus filhos e netos”, ela disse.
Um censo preliminar, divulgado no mês passado por uma organização de ajuda humanitária, apontou que aproximadamente 7%, ou cerca de 84 mil, dos estimados 1,2 milhão de haitianos que foram deslocados pelo terremoto, têm mais 60 anos.
A ONU também divulgou um relatório no mês passado, declarando que apesar da privação que mulheres jovens e crianças sofrem no Haiti desde o terremoto, são os idosos que correm maior risco. Os idosos têm sido ignorados pelos esforços de ajuda humanitária porque são mais frágeis, têm menos mobilidade e são menos veementes em suas exigências por água e comida, explicaram os representantes da ONU.
Mas as necessidades dos idosos que estão provando ser as mais difíceis, dizem seus defensores, são coisas intangíveis como segurança, continuidade e esperança.
Ao lado das ruínas do Asilo Municipal no bairro Delmas 2 de Porto Príncipe, quase 3 mil desabrigados passaram a habitar o que costumava ser o pátio tranquilo do asilo.
“Eu apenas quero ir para casa”, disse Jacqueline Thermitis, 71 anos, uma moradora do asilo, enquanto olhava para o mar de placas de metal corrugado, lonas e redes de plástico.
Já desorientado pela idade, um homem em uma cadeira de rodas parecia ainda mais confuso ao perguntar a ela quando voltariam para Porto Príncipe. “Este lugar é horrível”, ele disse.
A rotina, que por tanto tempo serviu como guia para os 75 ex-moradores do asilo, se foi. Assim como a privacidade e dignidade, já que tomar banho e defecar agora são feitos em público em baldes.
Aproximadamente metade deles diz estar assustado demais para voltar para dentro do asilo após ter sido reparado. Isso significa que muitos deles, que já estão doentes, enfrentarão a futura estação das chuvas em tendas surradas.
Para evitar disputas violentas, os funcionários de ajuda humanitária pararam de despejar dos caminhões as refeições prontas e água engarrafada como método de distribuição. Em vez disso, eles passaram a entregar os suprimentos a granel para mulheres que aguardam em longas filas que dobram o quarteirão.
Mas o sistema ainda é inadequado para os idosos, dizem os defensores.
“Faz sentido pedir para que uma pessoa de 70 anos carregue um saco de arroz de 50 quilos ou espere por duas horas em uma fila?” perguntou Jonathan Barden, um gerente do programa de emergência da HelpAge International, um grupo de defesa dos idosos.
Um número desproporcional de mais de 200 mil mortos no terremoto foi de pessoas com mais de 60 anos, segundo a ONU. Isso ocorreu principalmente porque a probabilidade era maior dos idosos estarem em lugares fechados, em vez de voltando do trabalho ou da escola, quando o ocorreu o desastre, no início da noite de 12 de janeiro, disseram as autoridades.
Os moradores mais velhos que sobreviveram –ou pelo menos aqueles que sobreviveram com suas faculdades intactas– parecem bastante cientes da escala histórica dos danos.
No parque Champ de Mars, Michel Fretond, 82 anos, apontou que o Haiti foi a primeira república negra independente do mundo. “Agora o relógio voltou ao zero”, ele disse, com um riso zombeteiro.
Não longe dali, o Palácio Nacional e os ministérios da Justiça e Finanças permanecem em vários estados de ruínas.
Na Direction Générale des Impôts, o prédio da receita, homens trajando macacões azuis usavam perfuratrizes para atravessar pilhas de lajes de concreto e ferros retorcidos. Enterrados ali –eles esperam– estão o que restou de arquivos e livros contábeis com informações vitais utilizadas para carteiras de motorista, passaportes, placas de automóveis e documentos de identidade.
“Não faz sentido eu ainda estar aqui”, acrescentou Fretond, descrevendo como seus dois filhos e três netos morreram no terremoto.
Mas Fretond, e outros de sua idade, são uma raridade aqui.
Aproximadamente metade da população do Haiti tem menos de 18 anos e a expectativa de vida é de 61 anos, em comparação a 78 anos nos Estados Unidos.
Mas devido ao impacto do HIV e Aids nas gerações intermediárias, e por causa dos pais frequentemente deixarem o país em busca de trabalho, os idosos exerceram historicamente um papel importante no Haiti, o de cuidar dos membros mais jovens da família.
Mais recentemente, eles têm servido a outros propósitos.
Nas aldeias, os idosos são aqueles que sabem quem morou em uma casa em particular, quem era parente de uma certa criança e quem era o dono de que terras”, disse Michel Bonnardeaux, um porta-voz da ONU, acrescentando que a ONU pediu aos aldeões idosos que ajudem no início de um registro nacional de certidões de nascimento e documentação de imóveis.
“A memória deles é um recurso nacional”, ele disse. “Pelo menos para nós.”
Cindy Powell, uma funcionária de ajuda humanitária da HelpAge que está reunindo as histórias orais dos haitianos mais velhos, disse que em certas ocasiões ela ouviu os idosos escaparem do presente compartilhando uma risada sobre dias melhores. Mas aqueles momentos eram fugazes, ela disse, e as conversas acabavam terminando em um silêncio melancólico.
De volta a Leogane, o epicentro do terremoto, Sufrad estava novamente respondendo perguntas no mês passado sobre sua infância.
Ela não se lembrava das datas. Mas ela se lembrava dos traumas das últimas cinco décadas: terremotos, furacões e “os homens com facões” dos tempos de Duvalier.
Um sorriso largo apareceu em seu rosto ao contar sobre quando provou sorvete pela primeira vez e sobre a encrenca em que se meteu quando fugiu de casa na adolescência para pular o Carnaval.
Sua lembrança mais querida foi de seu casamento, “por volta de quando Borno foi o presidente”, ela disse, se referindo a Louis Borno, que governou de 1922 a 1930. Sua lembrança mais triste foi de ver um de seus filhos ir para a prisão.
Ao ser perguntada por que imaginava ter sobrevivido por tanto tempo e o que futuro poderia reservar, Sufrad deu de ombros.
Em vez de olhar para frente ou para trás, ela disse, ele prefere olhar para o alto.
“Para Deus”, ela disse, apontando para o céu. “Ele me mantém aqui, por ora.”
Tradução: George El Khouri Andolfato